domingo, 19 de junho de 2011
sábado, 18 de junho de 2011
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo - e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal! Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira - sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e aos roubos dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste a lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?...) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém.Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal, a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos - e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Porque foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando, se soubesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti - e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava.Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa, de que me não acusas - e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!"É isto que eu não entendo - mas a culpa não é tua.
José Saramago, Deste mundo e do outro
sexta-feira, 17 de junho de 2011
“El derecho de vivir en paz”
A Pomba da Paz de Pablo Picasso
El derecho de vivir
poeta Ho Chi Minh,
que golpea de Vietnam
a toda la humanidad.
Ningún cañón borrará
el surco de tu arrozal.
El derecho de vivir en paz.
Indochina es el lugar
mas allá del ancho mar,
donde revientan la flor
con genocidio y napalm.
La luna es una explosión
que funde todo el clamor.
El derecho de vivir en paz.
Tío Ho, nuestra canción
es fuego de puro amor,
es palomo palomar
olivo de olivar.
Es el canto universal
cadena que hará triunfar,
el derecho de vivir en paz.
El Derecho de Vivir En Paz Victor Jara
Fê
terça-feira, 14 de junho de 2011
E há tanto para aprender!
Fernão Capelo GaivotaA maior parte das gaivotas não se querem incomodar a aprender mais do que os rudimentos do voo, como ir da costa à comida e voltar. Para a maior parte das gaivotas, o que importa não é saber voar, mas comer, como de resto a maior parte dos seres humanos.
Porém, para esta gaivota, o mais importante não era comer, mas sim voar, saber mais, conhecer mais 'alto'.
Mais que tudo, Fernão Capelo Gaivota adorava voar. Mas, como veio a descobrir, esta maneira de pensar e de ser diferente não o fazia muito popular entre as outras aves, em especial dos 'chefes do bando' que o observavam desconfiados. Até os próprios pais se sentiam desanimados ao verem que Fernão passava os dias sozinho, a experimentar, a cogitar, fazendo centenas de voos...
Não sabia porquê, mas, por exemplo, quando voava sobre a água a uma altitude inferior ao comprimento das suas asas abertas, conseguia manter-se no ar durante mais tempo e com menos esforço. Os seus voos não acabavam com o habitual mergulhar de patas abertas no mar, mas com um pousar leve, de patas bem unidas ao corpo. Quando começou a pousar em pé sobre a praia e depois a medir o comprimento da aterragem, os pais ficaram deveras preocupados.
-Porquê? Fernão, porquê? - perguntava-lhe a mãe - Por que não podes ser como o resto do bando?
Por que não deixas os voos rasos para os pelicanos e para o albatroz?
- Por que não comes? Filho, és só penas e osso!
-Não me importo de ser só penas e ossos, mãe. Só quero saber aquilo que consigo fazer no ar, e o que não consigo, mais nada. Só quero saber.
-Ouve lá, Fernão - disse-lhe o pai com bondade - O Inverno aproxima-se, haverá poucos barcos e o peixe das superfícies irá para zonas mais profundas. Essa história dos voos está muito bem, mas sabes que não te podes alimentar só disso. Se tens mesmo de estudar, então estuda a comida e a forma de a conseguir. Não te esqueças que a razão por que voas é comer.
Fernão baixou a cabeça, obediente. Durante os dias seguintes tentou comportar-se como todas as outras gaivotas, tentou mesmo a sério, disputando com o resto do bando a comida dos pontões e dos barcos de pesca, mergulhando para apanhar pedaços de peixes e pão. Mas não conseguiu.
"É tão inútil", pensou, deixando cair deliberadamente uma anchova, que lhe custara bastante a apanhar, aos pés de uma velha gaivota que o perseguia. Poderia ter passado todo este tempo a aprender a voar...
E há tanto para aprender!
Richard Bach, Fernão Capelo Gaivota
segunda-feira, 13 de junho de 2011
Santo António - Fernando Pessoa
«Ainda que escriptos sobre o thema popular dos três santos lisboetas de Junho,estes poemas não são, nem pretendi que fossem, populares. Baseados no obscurosentido pagão do nosso povo, pretendeu-se que o passassem para outro nível; que,sendo fieis à emoção simples do povo lisboeta, interpretassem sem obscuridadedesnecessária, com as complexidades naturaes da intelligência.Foram escriptos, todos os três, no dia 9 de Junho de 1935. Chronologicamente,pois, não há nelles erro, salvo se houver qualquer coisa de erro em toda antecipação.»
9/6/1935
Fernando Pessoa
SANTO ANTÓNIO
Nasci exactamente no teu dia —Treze de Junho, quente de alegria,Citadino, bucólico e humano,Onde até esses cravos de papelQue têm uma bandeira em pé quebradoSabem rir...Santo dia profanoCuja luz sabe a melSobre o chão de bom vinho derramado!
Santo António, és portantoO meu santo,Se bem que nunca me pegassesTeu franciscano sentir,Catholico, apostólico e romano.
(Reflecti.Os cravos de papel creio que sãomais propriamente, aqui,Do dia de S. João...Mas não vou escangalhar o que escrevi.Que tem um poeta com a precisão?)
Adeante ... Ia eu dizendo, Santo António,Que tu és o meu santo sem o ser.Por isso o és a valer,Que é essa a santidade boa,A que fugiu deveras ao demónio.És o santo das raparigas,És o santo de Lisboa,És o santo do povo.Tens uma aureola de cantigas,E entãoQuanto ao teu coração —Está sempre aberto lá o vinho novo.
Dizem que foste um pregador insigne,Um austero, mas de alma ardente e anciosa,Etcetera...Mas qual de nós vae tomar isso à lettra?Que de hoje em deante quem o diz se digneDexar de dizer isso ou qualquer outra cousa.
Qual santo! Olham a árvore a olho nuE não a vêem, de olhar só os ramos.Chama-se a isto ser doutorOu investigador.
Qual Santo António! Tu és tu.Tu és tu como nós te figuramos.
Valem mais que os sermões que deveras pregasteAs bilhas que talvez não concertaste.Mais que a tua longínqua santidadeQue até já o Diabo perdoou,Mais que o que houvesse, se houve, de verdadeNo que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,Vale este sol das gerações antigasQue acorda em nós ainda as semelhançasCom quando a vida era só vida e instincto,As cantigas,Os rapazes e as raparigas,As dançasE o vinho tinto.
Nós somos todos quem nos faz a história.Nós somos todos quem nos quer o povo.O verdadeiro titulo de gloria,Que nada em nossa vida dá ou trazÉ haver sido taes quando aqui andámos,Bons, justos, naturaes em singeleza,Que os descendentes dos que nós amámosNos promovem a outros, como fazCom a imaginação que ha na certeza,O amante a quem ama,E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigoNunca foi teu devoto: é teu amigo,Ó eterno rapaz.
(Qual santo nem santeza!Deita-te noutra cama!)Santos, bem santos, nunca têm belleza.Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...Tira lá essa capa!Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais ricoEm fantasia, promoveu-te a mangerico.
És o que és para nós. O que tu fosteEm tua vida real, por mal ou bem,Que coisas, ou não coisas se te devemCom isso a estéril multidão arrasteNa nora de uns burros que puxam, quando escrevem,Essa prolixa nullidade, a que se chama historia,Que foste tu, ou foi alguém,Só Deus o sabe, e mais ninguém.
És pois quem nós queremos, és tal qualO teu retraio, como está aqui,Neste bilhete postal.E parece-me até que já te vi.
És este, e este és tu, e o povo é teu —O povo que não sabe onde é o céu,E nesta hora em que vae alta a luaNum plácido e legitimo recorte,Atira risos naturaes à morte,E cheio de um prazer que mal é seu,Em canteiros que andam enche a rua.
Sê sempre assim, nosso pagão encanto,Sê sempre assim!Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,Esquece a doutrina e os sermões.De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.Foste Fernando de Bulhões,Foste Frei António—Isso sim.Porque demónioÉ que foram pregar contigo em santo?
(in Fernando Pessoa, Os Santos Populares, Edições Salamandra e Casa Fernando Pessoa)
domingo, 12 de junho de 2011
Porque hoje é noite de Stº António
Fê
Podiam ser para Sto AntónioAs quadras que aqui vos deixoMas escolhi de propósitoAs quadras do nosso Aleixo
Eu não sei porque razãocertos homens, a meu ver,
quanto mais pequenos sãomaiores querem parecer.
Enquanto o homem pensarque vale mais que outro homem,são como os cães a ladrar,não deixam comer, nem comem.
Vós que lá do vosso impérioprometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povoqu'rer um mundo novo a sério.Mentiu com habilidade,fez quantas mentiras quis;agora fala verdadeninguém crê no que ele diz.
Para não fazeres ofensase teres dias felizes,não digas tudo o que pensas,mas pensa tudo o que dizes!
ANTÓNIO ALEIXO
(1899 - 1949)
Um amigo é um dom
Porque um sonho é algo só teu e maior
É fácil pensar que é esse o teu dom
Mas se andas sozinho é pior
Tu vais mudar
E vais reparar
No mundo a acordar
Com tudo a brilhar
Do princípio ao fim
Um amigo assim a ajudar
Com quem encontrar
O belo que existe no teu coração
E percebes o amigo é um dom…o amigo é um dom
Com esse amigo não te irás perder
juntos para ao que vier
Ter sempre alguém que quer saber
Contigo irá mais além
Tu vais mudar
E vais reparar
No mundo a acordar
Com tudo a brilhar
Do princípio ao fim
Um amigo assim a ajudar
Com quem encontrar
O belo que existe no teu coração
E percebes o amigo é um dom…o amigo é um dom
Se sentes tudo a cair
A esperança a fugir
E tu, tu vês-te sozinho
E nao sabes mais onde vais
Queres encontrar o caminho
Não estás sozinho
O mundo a acordar
E tudo a brilhar
Do princípio ao fim
Um amigo assim a ajudar
Com quem encontrar
O belo que existe no teu coração
E acreditas, e acreditas, e acreditas
Um amigo é um dom !
sexta-feira, 10 de junho de 2011
Pois meus olhos não cansam de chorar ...
Endeixa
Pois meus olhos não cansam de chorartristezas, que não cansam de cansar-me;pois não abranda o fogo, em que abrasar-mepôde quem eu jamais pude abrandar;
não canse o cego Amor de me guiara parte donde não saiba tornar-me;nem deixe o mundo todo de escutar-me,enquanto me a voz fraca não deixar.
E se em montes, rios, ou em vales,piedade mora, ou dentro mora Amorem feras, aves, plantas, pedras, águas,
ouçam a longa história de meus malese curem sua dor com minha dor;que grandes mágoas podem curar mágoas.
terça-feira, 7 de junho de 2011
domingo, 5 de junho de 2011
sábado, 4 de junho de 2011
Cantiga do Zé
O Zé não sabe onde pôr as mãosE está farto de as ter no arNão teve sorte com os padrinhosNem tem jeito para roubar
O Zé podia arranjar empregoE matar-se a trabalharMas olha em volta e o que vêNão o pode entusiasmar
E a cidade cá está para o entreterIndiferente e fria, disposta a esquecerQue a ansiedade é um MinotauroQue se alimenta de solidãoE que a ternura é uma bruxaQue faz milagresSe a mente a deixar ser
O Zé está vivo e é das tais pessoasQue sentem prazer em rirMas tenho visto ultimamenteEsse gosto diminuir
O Zé experimenta um certo vazioComum a uma geraçãoQue despertou da adolescênciaCom "vivas" à revolução
E a cidade cá está para o entreterIndiferente e fria, disposta a esquecerQue a ansiedade é um MinotauroQue se alimenta de solidãoE que a ternura é uma bruxaQue faz milagresSe a mente a deixar ser
Jorge Palma
quarta-feira, 1 de junho de 2011
Canção de Embalar
Dorme meu menino a estrela d'alvaJá a procurei e não a viSe ela não vier de madrugadaOutra que eu souber será p'ra ti
Outra que eu souber na noite escuraSobre o teu sorriso de encantarOuvirás cantando nas alturasTrovas e cantigas de embalar
Trovas e cantigas muito belasAfina a garganta meu cantorQuando a luz se apaga nas janelasPerde a estrela d'alva o seu fulgor
Perde a estrela d'alva pequeninaSe outra não vier para a renderDorme qu'inda a noite é uma meninaDeixa-a vir também adormecer
José Afonso
Todas as crianças deviam ter um soninho descansado.
Fê
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