Com o passar dos anos, o olhar vai ficando desfocado. Não estou a falar de miopia ou qualquer outro problema oftalmológico, mas o olhar da alma.
As preocupações, incertezas e frustrações, vão criando uma névoa fina que, se não tratada, cega completamente a capacidade de ver o belo e o agradável.
Deixamos de nos encantar, deixamos a cegueira corroer a córnea da esperança.
Quem já se aprofundou no olhar de uma criança, sabe que a luz, que mora dentro daqueles olhinhos é diferente. A pureza desse olhar, tem o poder transformador da inocência.
Hoje, enquanto me dirigia para a à praia, o meu olhar só via, o lado feio da vida ( acessos degradados, estacionamento mal cuidado, lixo e desleixo...).
Mais tarde, já na praia, vi chegar dezenas de crianças dos infantários, que corriam, saltavam , riam e gritavam, acordando-me para o outro lado:
"há mais de 20 anos que o conheço, dono de um pequeno café perto da casa dos meus pais.
magro, postura altiva, gentil e culto, sempre com um sorriso tímido [talvez para ocultar a falta de alguns dentes] é daquelas pessoas com idade indefinida, mas que parecem não envelhecer.
habituámo-nos, naqueles minutos que demoro a beber um café depois do almoço, a falar sobre a vida, a partilhar risos e emoções, a "filosofar" como ele tanto gosta de dizer .
há dez anos a esposa faleceu, o sorriso tímido, ficou triste. a postura curvada, mas a nossa amizade ficou mais cúmplice, na dor e depois na superação.
ultimamente tenho notado nos seus olhos um brilho diferente, rejuvenescido:
- sr. Carvalho o que se passa consigo que o noto diferente ?
- para melhor espero! e piscando-me o olho, disse-me baixinho:
- estou apaixonado , mas é segredo, só a menina Fernanda é que vai saber.
- fico muito feliz por si, mas porquê, só eu ?
- porque para mim, a menina é como se fosse a minha mãe."
nota:
descobri há pouco tempo a sua bonita idade , 83 anos
_Fê blue bird_ ( 2017)
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Escrevi este pequeno texto em Fevereiro de 2017, continuei, até às limitações que esta pandemia nos colocou, a visitar e a beber um cafezinho, no cantinho do Sr. Carvalho.
Depois, sempre que lá passava, via a lojinha fechada, até que me desabituei a esta rotina, como infelizmente me desabituei, a tantos outros pequenos prazeres.
Do Sr. Carvalho nunca mais soube nada, até ontem. Por acaso, vi a loja aberta, uma alegria, mas também uma certa apreensão sobressaltou-me.
Espreitei, chamei pelo seu nome. Um jovem apareceu por detrás do balcão :
-Desculpe, conhece ou sabe como está, o Sr. Carvalho ?
-Sou o neto, o meu avô está bem, mas já não sai de casa, e vive agora com os meu pais.
- Por favor, quando estiver com ele, diga-lhe que a amiga Fernanda, lhe manda um grande abraço. Obrigada!
Senti, alívio por saber que está bem, mas ao mesmo tempo, uma tristeza enorme. Aquela loja era tudo para aquele senhor. Prezava muito a sua independência . Ali, fez amigos, partilhou e ouviu, vivências e confidências. ALI, VIVIA !
Fê blue bird- 2021.
*
Franz Joseph Haydn - Symphony nº 45 "Farewell Symphony"